5 de setembro de 2021

Receptáculo quebrado


            O frio do chão de pedra invadiu meu corpo. Minha bochecha, descoberta, apoiada contra a calçada, ardeu ao seu contato. O vento soprava incessantemente uma canção lúgubre, interrompida apenas pelo som do vidro estilhaçado. O solo, úmido, emanava o cheiro do lodo que se alojava nas frestas entre as pedras e refletia o débil brilho da lua cheia que, em vão, tentava penetrar a maciça obscuridade daquela noite.

            Sentei-me contra a parede e observei os cacos da minha garrafa. Não era tão mau que tivesse desperdiçado a bebida, afinal, em vez de fazer-me esquecer do que sentia, apenas o tinha potencializado. Mas que sentia? Raiva. Tristeza. Pesar. Culpa. A dor da perda. Por que diabos era tão difícil distinguir? Por que não era possível simplesmente esquecer? Aquela sensibilidade exacerbada era como uma faca que pendia sobre mim. Não podia evitar sentir aquilo que os outros sentiam. Fazia-me mal como se fosse meu, senão mais. A cada contato, uma facada a me perfurar o corpo. As relações humanas são tão frágeis e tão suscetíveis à dor. Como fugir-lhe?

            Eu já não suportava meu papel de receptáculo. São muitas emoções, cada quais com suas particularidades, todas sempre subversivas. E se espalham pelos meus membros, meus órgãos, sublevam meus pensamentos. E doem — fisicamente doem, mais profundas que qualquer fenda na carne. Misturam-se e formam um nó palpável no estômago, provocando uma agonia que atinge a alma. Para isso existem as drogas, tal qual a morte.

            Ao meu lado sentou-se um homem, encolhido em seus agasalhos tão escuros quanto sua pele e seus cabelos em dreads. Sem uma palavra, acompanhou-me na contemplação dos cacos de vidro e da dor. De alguma forma, sua presença acalmou minha respiração e desentesou meus músculos. Seus olhos profundos, quietos, pareciam enxergar até onde iam os meus. Cheirava a ervas e sua respiração substituiu o ruído do vento. Após um tempo que eu não soube contar, olhou para mim, ancorando seus olhos nos meus, e não pronunciou uma palavra sequer. Mas eu pude entender.

            “Sinta!”

            Desatei a chorar. Não um choro contido, o choro másculo que se deve reter e esconder, mas um choro espalhafatoso, berrante. Eram torrentes de emoções que se esvaíam do meu corpo de uma só vez, há tanto tempo contidas que portavam a força de um oceano. Sentia-as, pela primeira vez, sem hesitação, deixando-me afogar em todas elas, pronto para deixar-me ruir aos seus pés. Entreguei-me. Senti. Vivi.

            Após instantes, quem sabe horas, levantei-me. Sentindo-me leve, caminhei, pisando nos cacos de vidro que jaziam no chão. Já não mais me sentia pesado. Muito pelo contrário, sentia-me livre, mais vivo do que nunca. As emoções que antes me acompanhavam — minhas e alheias — já não passavam de cacos. Sentia-me inteiro, verdadeiro, sentia-me eu mesmo. E agora sabia que não poderia me esquivar das emoções que compõem a existência humana. A partir de então, senti-las-ia. Sempre. Sem hesitação. Porque só assim posso desvelar meu coração e seguir o caminho que é verdadeiramente meu.

2 de março de 2021

Ruína do autocontrole

 

“A diferença entre o homem e o macaco é que o homem se pode controlar, enquanto que o macaco se irá coçar se lhe vier a vontade”, disseram-me um dia.

Controle versus impulso. Razão versus sentimento. Eu nunca antes tinha parado para pensar o quanto essa dicotomia me moldou enquanto pessoa humana. Agora me dou conta de que talvez devesse tê-lo feito. Pensar, quero dizer. De qualquer modo, antes tarde do que mais tarde.

O fato é que essa máxima me causou tanto impacto que cresci achando-me dono do meu autocontrole. Tornei-me mestre em controlar meus impulsos. Não havia nada que meu corpo pudesse ansiar com que eu não fosse capaz de lidar. Afinal, em meu corpo mando eu. Portanto, desenvolvi-me convencido de que poderia conquistar tudo que quisesse. Bastava querê-lo e fazer com que acontecesse. Eu tinha capacidade mental para ter disciplina física o bastante a fim de chegar aonde quisesse, ainda que em troca de muitos esforços. Minha mente era inquestionavelmente a grande imperatriz sobre o corpo onde habitava.

Tornei-me pessoa calma. Aquela criança que retrucava e discutia não mais existia em mim, pois eu agora era cem por cento capaz de manter a cabeça no lugar.

Ciúmes? Jamais. Idiotice. Se sentia, simplesmente controlava e internalizava.

Acrescentaria que, na medida em que se logra ter autocontrole sobre si mesmo, isto se traduz, pelo menos em seus termos mais aparentes, em frieza, calculabilidade e, em certa medida, mania sistemática. No entanto, não faltam elogios vindos de alhures: “é organizado”, “pés no chão”, “tranquilo”, “sabe o que quer”. Pois bem, tornei-me tal: o mestre da disciplina, o melhor naquilo que fazia, um convicto em minhas próprias convicções inquebrantáveis e não corrompíveis.

Contudo, chegou o dia em que o império da minha mente começa pouco a pouco a desmoronar. O autocontrole esvai-se como o ar de uma bexiga. Não mais me consigo controlar. Surgem novas sensações que tomam conta de mim. E me vejo completamente atordoado, desnorteado.

Onde andará meu autocontrole?

Emoções como nunca antes senti afloram. Mas afloram com força, porque, por tanto tempo reprimidas, puderam pegar impulso. Não me reconheço mais. Não detenho mais controle sobre o que sinto. Disciplina? Não sei onde anda; simplesmente não quero mais levantar da cama. Metas? Talvez haja alguma, mas decerto nenhuma convicção. Qual a razão de eu existir, afinal?

Meu corpo começa a ruir. Entrega-se às dores físicas, à magreza, e não mais consigo orientá-lo para deixá-lo do modo que desejo. É como se ele ditasse as regras agora, mas eu ainda não falo sua língua. As portas que se abrem, no entanto, parecem mostrar-me um caminho difícil: se escutar, se entender, se respeitar e se aceitar. É mais difícil fazer do que escrever.

Vinte cinco anos de certezas podem se abalar tão facilmente. Você não reprime nada que não volte com muito mais força posteriormente. Parece-me que o segredo, portanto, é sentir.

            Autocontrole não é mais uma opção.

            Sentir, sim.

            Com quê? Com o coração.

            Agora resta aprendê-lo.

14 de outubro de 2020

Borboletas versus sentimentos


    A página em branco parece quase como um desafio. Faz tanto tempo. Talvez tempo demais. De qualquer forma, li que o primeiro passo para escrever é escrever, portanto nada melhor para espantar a falta de ideias do que uma metafísica sobre a própria falta de ideias. Mas chego à conclusão de que, nesse caso, a falta de ideias é uma contradição ontológica e conceitual, haja vista que o impedimento maior consiste na incapacidade de filtrar e organizar inumeráveis ideias.

    Entenda-se que, por ideias, quero dizer sentimentos. Não pode ser outra coisa esse persistente nó no estômago, pois borboletas não comi. Pois se dizem que as duas coisas se assemelham, por extensão deduzo que trata-se das primeiras. Além de que incomodam, e borboletas nunca vi incomodar ninguém. Quanto à natureza desses sentimentos, temo não saber precisar. São daqueles que aceleram tua respiração subitamente e sem qualquer razão aparente, e que fazem o coração querer saltar do peito. Este último, por vezes, decide bater em lugares diversos, como no antebraço ou na batata da perna. São também daqueles que te desmotivam das tarefas cotidianas e te recobrem de um sentimento que se assemelha à tristeza, mas parece mais uma indiferença com ausência total de ânimo ou felicidade. Dito isso, agora me queda claro que esses são sentimentos vis.

    A cura para essa mazela ainda desconheço. Quanto mais penso sobre isso, mais me convenço de que a solução é não pensar; mas o não pensar me leva a querer achar uma solução para tal desgosto. Preso nesse dilema, me resta continuar a fazer minhas atribuições até que delas eu me veja livre. Saboreio os dias bons como vitórias; e os ruins, passo por eles com indiferença. E contando. Hoje faltam 51 dias. Minha grande esperança é que a aproximação da data final possa me revigorar os ânimos e trazer de volta aquela felicidade que eu acreditava inquebrantável.

    A verdade é que sou tão humano como qualquer um; e eu que me achava inabalável experimentei o mal do século XXI. Não há mais caminho de volta. Eu que era incapaz de compreender esses sintomas, agora vivo-os na pele. Superá-los-ei. E, doravante, serei apto para empatizar com quem quer que os sinta, e talvez, pela primeira vez, possa ajudar de verdade.

7 de maio de 2020

Reencontro


            Eu estava lá quarenta minutos antes do combinado. Não que fosse apenas ansiedade, mas devo admitir que ela tinha uma grande participação nisso. Desde a véspera eu só pensava naquele encontro, de modo que tinha me arrumado bem mais cedo do que necessário. E como veio a calhar que o ônibus seguinte me daria alguns minutos de atraso, não vi inconveniente em sair antes.
            Logo, eu tinha bastante tempo para reflexão antes que ela chegasse. Acomodei-me num banco de metal preto retorcido, debaixo de uma gameleira enorme que, soberba, sombreava quase toda a extensão da praça. Suas folhas, recém-caídas devido à chegada do inverno, formavam um tapete multicromático sobre o chão, que o vento oeste tratava de espalhar de forma espiralada. Enquanto esperava, meus olhos pairavam nos transeuntes e minha mente se entregava à péssima tendência de conjeturar como tudo se passaria quando ela chegasse. Malfazeja prática que cria expectativas e, quando estas não são correspondidas, mágoas. Era inevitável, entretanto, pensar em tudo que vivera até ali, em como nossas vidas foram cheias de encontros e - principalmente - desencontros, em como tudo dava tão certo de forma tão errada que mais de uma vez tinha desejado desistir, implorando a quem ou o que quer que tivesse jurisdição nesses assuntos que a arrancasse da minha cabeça e do meu coração, que me deixasse livre desse sentimento tão belo quanto depredatório. Eu não tinha certeza de que ela viria e, pensando melhor agora, talvez não quisesse saber, afinal a resposta àquela pergunta estava no meu bolso, a duas mensagens (uma pergunta e uma resposta) de distância.
            Ou se tinham passado quarenta minutos num piscar de olhos ou ela também estava adiantada quando se sentou ao meu lado. Lançou-me um “oi” jovial, com o rosto munido daquele sorriso capaz de amansar o mais vil dos delinquentes, e me quedou a fitar. Ao contrário de todas as possibilidades que tinha imaginado até aquele momento, me vi impossibilitado de responder, ficando imóvel a olhá-la dentro dos olhos. Sentindo o ridículo da situação, minha suma resposta foi um sorriso. Tomando a frente das circunstâncias, pegou minhas mãos nas suas e começou a despejar para fora tudo que eu não tinha ficado sabendo de sua vida até então, falando daquele jeito rápido e melodioso, num discurso adornado de um palavrão aqui e acolá. Aos poucos fui relaxando e reagindo com caretas, grunhidos e comentários-padrão. Em alguns momentos precisava me conter para não me perder no seu cheiro, no seu hálito e para segurar o ímpeto de abraçá-la e beijá-la, o que era tremendamente normal.
            Ela então me perguntou de mim, queria saber o que eu andava fazendo, como estava minha vida. E respondi, como sempre, que estava bem, que continuava praticando esportes, escrevendo uma coisa ou outra fingindo ser bom nisso, dançando e lendo muitos livros. Continuava solteiro, mas não mais (ou ainda) com a carência de estar com alguém, porque estava bem assim. Seguia inventando empreitadas novas para me arriscar, mas na essência eu continuava a mesma pessoa, salvo uns cabelos brancos a mais.
            Finda minha enunciação, o silêncio se instalou e os ruídos do ambiente em volta se fizeram mais presentes. Olhei-a nos olhos por um instante, e ela me abraçou. Pude sentir novamente de perto o seu cheiro, o contato com a sua pele, seu peito obedecendo o ritmo ditado pela sua respiração, no meu pescoço. Por um momento, desejei que aquele momento se eternizasse.
            “Senti sua falta”, ela disse. “Se você quiser, podemos nos ver mais vezes.”
            E eu não precisei responder porque ela sabia qual seria minha resposta. Então beijou meu rosto, se apartou e disse que precisava ir. Quanto tempo se tinha passado, eu não fazia a mínima ideia, mas parecia ter sido um momento ínfimo. Olhei-a se afastar pela praça e seguir a rua até sumir de vista. Quanto a mim, permaneci sentado, no mesmo lugar, esforçando-me para não deixar partir a lembrança agora tão nítida de tê-la por perto. Mas eu sabia que não era tarefa fácil, pois o tempo não tem pena de ninguém e passa levando consigo tudo que ficou para trás. Comecei até a duvidar se aquele momento tinha mesmo acontecido, se tinha sido real ou delírio da minha cabeça. Então, meu celular vibrou dentro do meu bolso. Saindo do transe, peguei-o e abri a mensagem. Era dela e dizia “te amo”. Bufei num sorriso beato, meneei a cabeça e levantei do banco. Real ou não, aquilo definitivamente era muito bom.