O frio do chão de pedra invadiu meu
corpo. Minha bochecha, descoberta, apoiada contra a calçada, ardeu ao seu contato.
O vento soprava incessantemente uma canção lúgubre, interrompida apenas pelo
som do vidro estilhaçado. O solo, úmido, emanava o cheiro do lodo que se
alojava nas frestas entre as pedras e refletia o débil brilho da lua cheia que,
em vão, tentava penetrar a maciça obscuridade daquela noite.
Sentei-me contra a parede e observei os cacos da minha garrafa. Não era tão mau que tivesse desperdiçado a bebida, afinal, em vez de fazer-me esquecer do que sentia, apenas o tinha potencializado. Mas que sentia? Raiva. Tristeza. Pesar. Culpa. A dor da perda. Por que diabos era tão difícil distinguir? Por que não era possível simplesmente esquecer? Aquela sensibilidade exacerbada era como uma faca que pendia sobre mim. Não podia evitar sentir aquilo que os outros sentiam. Fazia-me mal como se fosse meu, senão mais. A cada contato, uma facada a me perfurar o corpo. As relações humanas são tão frágeis e tão suscetíveis à dor. Como fugir-lhe?
Eu já não suportava meu papel de receptáculo. São muitas emoções, cada quais com suas particularidades, todas sempre subversivas. E se espalham pelos meus membros, meus órgãos, sublevam meus pensamentos. E doem — fisicamente doem, mais profundas que qualquer fenda na carne. Misturam-se e formam um nó palpável no estômago, provocando uma agonia que atinge a alma. Para isso existem as drogas, tal qual a morte.
Ao meu lado sentou-se um homem, encolhido em seus agasalhos tão escuros quanto sua pele e seus cabelos em dreads. Sem uma palavra, acompanhou-me na contemplação dos cacos de vidro e da dor. De alguma forma, sua presença acalmou minha respiração e desentesou meus músculos. Seus olhos profundos, quietos, pareciam enxergar até onde iam os meus. Cheirava a ervas e sua respiração substituiu o ruído do vento. Após um tempo que eu não soube contar, olhou para mim, ancorando seus olhos nos meus, e não pronunciou uma palavra sequer. Mas eu pude entender.
“Sinta!”
Desatei a chorar. Não um choro contido, o choro másculo que se deve reter e esconder, mas um choro espalhafatoso, berrante. Eram torrentes de emoções que se esvaíam do meu corpo de uma só vez, há tanto tempo contidas que portavam a força de um oceano. Sentia-as, pela primeira vez, sem hesitação, deixando-me afogar em todas elas, pronto para deixar-me ruir aos seus pés. Entreguei-me. Senti. Vivi.
Após instantes, quem sabe horas, levantei-me. Sentindo-me leve, caminhei, pisando nos cacos de vidro que jaziam no chão. Já não mais me sentia pesado. Muito pelo contrário, sentia-me livre, mais vivo do que nunca. As emoções que antes me acompanhavam — minhas e alheias — já não passavam de cacos. Sentia-me inteiro, verdadeiro, sentia-me eu mesmo. E agora sabia que não poderia me esquivar das emoções que compõem a existência humana. A partir de então, senti-las-ia. Sempre. Sem hesitação. Porque só assim posso desvelar meu coração e seguir o caminho que é verdadeiramente meu.